Escrevo porque minha pele deseja se vestir de você, viver um segundo do seu caos e cuidar do seu sono intranquilo. Escrevo porque toda escrita reflete aquilo de que estamos cheios. Escrevo porque a cada dia que vejo surgir teu corpo humano, pouco a pouco mais despido das minhas ilusões, mantenho o desejo de provar seu desengano. Escrevo porque quero te lembrar que terei quantos quilos de paciência forem necessários pra pintar um frame de paz num sorriso seu. Escrevo porque quero esclarecer que também sou uma casa bagunçada, precisando de reparos que podem nunca chegar. Escrevo porque quero que você aceite o meu melhor. Escrevo porque você vale a pena. Escrevo porque é sobre você.
Eu quis te escrever um poema tão bonito quanto o seu sorriso tímido, pra estampar na sua vida o tamanho da lembrança boa que eu carrego de você, que embora possa ser enfeitada pela minha imaginação, é bastante vívida e clara. Mas eu falhei. Falhei porque eu sei que não deveria, mas eu quis a todo custo te dizer "sabia que os dias são muito melhores depois de você?". Queria muito poder lembrar do cheiro que você tem, só pra reforçar a vontade que tenho sentido de saber qual é o seu gosto... Mas eu não deveria. Você vai ter que me perdoar por isso, mas é crime você não saber: eu nunca senti que eu cabia num abraço antes de me despedir de você. Pode ser que você não queira mais me ver, finja que esse assunto nunca existiu, mas deve saber agora que pra alguém no mundo o seu abraço foi o melhor possível. Que antes disso não havia nada, mas que de repente mudou tudo.
Você traçou em nossa substância a dualidade, e de tão profundo corte, só resta agora a carne magoada.
Com muito custo nós conseguimos alinhar nossas mentes e compreender tudo. Foi duro descobrir o momento de te deixar, ao mesmo tempo que nada mais podia ser feito, não podíamos mais viver da sua ilusão. Sua carapaça ruiu, a nossa ignorância foi dissolvida e nada se sustentou, nem as palavras bonitas que costumavam apagar todo o resto.
E que pena, que pena que toda a beleza que víamos não pertencia verdadeiramente a você e sim aos nossos olhos. Que a mestria, que ainda existe, não nos acerte mais.
Você quebrou as colunas da nossa casa, lentamente, uma a uma, pancada atrás de pancada, até não restar quase nada além de poeira, desordem e lembrança.
Ainda que flagelada, eu só posso querer que o seu combustível seja mais que seu desejo de comprovação, que o que você comunique seja o seu real traquejo e que a sua poesia te mova até onde você desejar aportar.
Como é possível não recordar rapidamente de um rosto amigo?
Eu me esforço um pouco e parece que nada... Aí entra a grande utilidade tecnológica, ou nem tão grande assim, e eu simplesmente procuro uma foto sua. Não me satisfez, eu queria lembrar uma memória que fosse só minha.
Esforço-me um pouco mais e voilá: Lembro a última vez, talvez a única, que parei pra prestar atenção nele. Porque, sabe, não é sempre que a gente faz uma análise das feições dos amigos, especialmente daqueles que fazem parte de tudo que a gente é e que acabam banalizados. Era um dia quente na rua, eu te olhava de cima pra baixo enquanto o sol fazia seu rosto pequeno acender, tão rápido quanto o seu cigarro, assim como quem ilumina alguém com uma lanterna, seus olhos se apertavam e você desguiava o rosto de tempo em tempo da luminosidade. Sem prestar muita atenção no que você dizia, travei um diálogo comigo mesma que rapidamente concluí: "Que pele boa ele tem, nunca tinha reparado", nenhuma grande marca ou espinhas, bochechas rosadas e os pelos castanho claro brilhavam um pouco com a luz natural da tarde. Mas não era só isso que eu queria rememorar. Que estranho é tentar desconstruir a imagem pré-moldada que temos de alguém. A forma como lembramos é sempre pior ou melhor, nunca a realidade. Mediano, de corpo magro e pele branca, meu amigo é um menino. Embora tenha vivido cem anos mais do que eu, tenha uma consciente invejável de si mesmo, seja forte e decidido, é um menino. Possui uma inocência infantil, uma insegurança inquietante e uma preguiça dos dias de domingo. E era disso que se tratava, eu não queria lembrar só da sua imagem física, por isso era tão difícil evocar. Se eu pudesse terminar descrevendo melhor essa grande imagem que eu tenho dele ou mesmo as notinhas de rodapé guardadas em minha memória vezes fresca, vezes cheia de lapsos, diria que quando olhando pra ele eu vejo uma fina capa protetora, translúcida, que reflete intensidade, mas que de tão frágil bate um receio de que qualquer abraço austero abra uma fenda e deixe escapar os pequenos lampejos que meu amigo fagulha e que me iluminam nos seus dias de sol.